domingo, 28 de setembro de 2008

Saramago em entrevista para O Globo

Entrevista originalmente publicada no Blog do Bonequinho do Jornal O Globo em 10/09/08 às 8:00.

Entrevista: Saramago elogia ‘Ensaio sobre a cegueira’

Prestes a lançar “A viagem do elefante”, o 44º livro de uma carreira consagrada com o prêmio Nobel de literatura, José Saramago pede licença a seus compromissos com a prosa sempre que o assunto é a adaptação cinematográfica dirigida por Fernando Meirelles de seu “Ensaio sobre a cegueira”. Co-produção entre o Brasil, o Canadá e o Japão, o longa-metragem, estrelado por Julianne Moore, estréia nesta sexta-feira sob as bênçãos do escritor português. Desde maio, logo após a exibição da produção na abertura do Festival de Cannes, Saramago se mostrou satisfeito com o que viu. Nesta entrevista ao GLOBO, feita por e-mail, o autor de “Memorial do convento”, que completa 86 anos em novembro, chama de “brilhante” o trabalho de Meirelles na direção. Em tom de parábola, o filme fala de uma misteriosa epidemia capaz de gerar perda de visão em massa, levando suas vítimas a um doloroso processo de quarentena. Admitindo completo desprezo pela ditadura dos efeitos especiais na telona, Saramago avalia sua relação com o cinema e analisa duas graves catástrofes contemporâneas: a cegueira política e a miopia artística.

No filme de Fernando Meirelles, assim como no seu livro, a epidemia de cegueira é retratada como uma catástrofe, servindo como metáfora para desarmonias sociais contemporâneas. O que significa ser cego no mundo pós-11 de Setembro?

SARAMAGO: Já estávamos cegos antes do 11 de Setembro. O mundo é muito maior que Nova York, e o terrorismo é apenas um dos males de que a Humanidade tem sofrido desde sempre e quem sabe se para sempre. Peço perdão pelo que o termo “apenas” possa parecer restritivo. Se não nos limitássemos a olhar, se víssemos de fato o que temos diante dos olhos todos os dias, se tudo isso tivesse um efeito real na nossa consciência, então não poderia haver nada capaz de deter o movimento geral de protesto que se desencadearia a escala mundial contra o terrorismo da al-Qaeda, mas também contra essa enfiada maldita de calamidades que fizeram deste mundo um inferno, o único, porque é impossível que haja outro como este. Costumo dizer que o ser humano é um animal doente. Os fatos o confimam. Quanto ao “Ensaio sobre a cegueira”, sou o primeiro a dizer que não passa de uma pálida imagem da realidade.

Logo após a exibição de “Ensaio sobre a cegueira” em Cannes, em maio, o senhor exaltou as qualidades do filme. Hoje, como o senhor avalia o trabalho de Fernando Meirelles na transposição de seu texto para o cinema?

SARAMAGO: O resultado da adaptação de Fernando Meirelles é mais do que satisfatório. Considero-o até brilhante. O essencial da história está ali, como seria de esperar, mas, sobretudo, encontrei na narrativa fílmica o mesmo espírito e o mesmo impulso humanístico que me levaram a escrever o livro. Nem Fernando Meirelles nem eu pensamos que vamos salvar a Humanidade, mas somos conscientes de que, quer como artistas, quer como cidadãos, levamos a cabo um trabalho responsável.

O senhor conhece a obra cinematográfica de Meirelles?

SARAMAGO: Vi e apreciei como devia “Cidade de Deus” e “O jardineiro fiel”. Quando dei o “sim” a Fernando, sabia o que fazia. Suponho que os brasileiros devem estar orgulhosos de que um dos seus seja um dos melhores realizadores de cinema da atualidade. Quanto à minha relação com o cinema internacional, para além da irritação profunda que me causam os chamados efeitos especiais, reconheço que não o acompanho com regularidade. O caráter absorvente do meu trabalho de escritor distrai-me da obrigação de princípio de acompanhar de perto outras manifestações artísticas, sem esquecer a distância física a que me encontro dos grandes centros (o autor vive entre Lisboa e a Ilha de Lanzarote, na Espanha).

Além de Meirelles, o que mais o senhor conhece do cinema brasileiro? E em relação ao cinema português? O nonagenário Manoel de Oliveira, o mais importante cineasta de seu país, está entre seus “diretores de cabeceira”?

SARAMAGO: A resposta anterior já antecipou em grande parte o que poderia dizer sobre este assunto. Não sou de todo ignorante do que se tem feito em Portugal e Brasil, mas o meu conhecimento é demasiado parcelar para que me permita uma opinião fundada. Admiro Manoel de Oliveira, evidentemente, mas confesso que não está entre os que chamo de meus diretores de cabeceira.

Passados quase 13 anos da publicação de “Ensaio sobre a cegueira”, que dilemas o senhor acredita que a personagem da Mulher do Médico, interpretada por Julianne Moore, ainda sintetiza? O senhor releu o livro a fim de saber a atualidade da parábola nele representada?

SARAMAGO: Muitas das “mulheres do médico” são homens. São todas aquelas pessoas que estão conscientes do verdadeiro caráter do mundo em que vivem e que sofrem por não ver sinais positivos de mudança, mas também pela sua própria impotência perante o desastre que se tornou a vida humana. Não li o livro recentemente. Aliás, não é meu costume reler o que escrevi. Obviamente, releio as provas. Mais do que isso, não.

Qual é a maior cegueira literária do mundo contemporâneo?

SARAMAGO: Considero a literatura talvez a menos cega das expressões artísticas atuais. Em muitos dos livros que têm sido escritos, se forem atentamente lidos, encontrar-se-á, além de claras denúncias da dramática situação a que chegamos, abundante e substancial matéria de reflexão. Assim, que o leitor esteja disposto a abandonar a sua mais ou menos confortável cadeira de espectador do mundo.

O que nos espera em seu novo livro, “A viagem do elefante”, que a Companhia das Letras promete para novembro?

SARAMAGO: O meu próximo livro, “A viagem do elefante”, não é um romance, mas sim um conto, uma narrativa que, apesar das suas 250 páginas, não perde nunca a sua natureza de conto. Pelo contrário, reivindica-a. A história parece simples, o relato do que acontece a um elefante que é levado de Lisboa a Viena, mas a simplicidade, neste caso, é uma mera aparência. O leitor julgará por si mesmo.

No seu blog (http://blog.josesaramago.org), o senhor adianta que “A viagem do elefante” será uma trama coral, narrada a várias vozes. De que maneira esse enredo vai abordar a questão da solidariedade, tema que norteia “Ensaio sobre a cegueira” e vários outros livros seus?

SARAMAGO: As questões da coralidade e da solidariedade, embora presentes, são algo marginais ao miolo da história. Como é meu costume, uma vez mais, a epígrafe do livro resume e anuncia o que virá depois: “Sempre acabaremos chegando aonde nos esperam”. A frase só aparentemente é enigmática.

Três décadas após a publicação de “Objecto quase”, livro que marca sua estréia como contista, o senhor retoma o fomato em seu novo livro. O senhor pretende continuar a investir nos contos?

SARAMAGO: Não creio, ainda que me tenha atrevido a chamar conto a “Viagem do elefante”… De todo modo, tomo nota da sugestão.

Por Rodrigo Fonseca.

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