“Sonata de Outono” (1978) é de uma sensibilidade latente, e um lembrete de que Ingmar Bergman é tão bom escritor quanto diretor. O texto é um tratado sobre as complicadíssimas relações entre mãe e filha, provavelmente o filme absoluto sobre o tema. Será que algum outro filme foi tão a fundo nas frustrações e desentendimentos inerentes à esta difícil relação? Mãe e filha aqui chegam a falar diretamente uma para a outra coisas que jamais imaginaríamos que tais personagens teriam coragem de dizer. Ingmar Bergman fez um filme duro e chocante como poucos e, principalmente, um filme absolutamente verdadeiro, onde toda e qualquer hipocrisia ou mentira social cai por terra após 90 minutos. As personagens são desnudadas e ficam completamente abertas ao nosso julgamento (se é que podemos realmente julgá-las). Será que uma carreira brilhante é justificativa suficiente para se negligenciar as filhas? Seria a desventura da filha um desejo secreto de cada mãe? São perguntas duras (entre muitas do filme), que trazem respostas que podem apenas trazer respostas pessoais, de cada um, jamais respostas “globais”. De qualquer forma, “Sonata de Outono” pode funcionar, para muita gente, quase como uma sessão de análise. Imagino que muitas mulheres reavaliem vários aspectos de suas relações familiares enquanto assistem esse filme.
O roteiro é excelente, de uma força incomum, mas tudo poderia desabar sem atores à altura. Felizmente para todo mundo, foi justamente em “Sonata de Outono” que aconteceu, pela primeira e única vez, a parceria entre os mais famosos Bergmans do mundo: A Ingrid e o Ingmar (ambos
suecos, mas não aparentados). Esses dois craques tiveram uma simbiose perfeita, Ingrid Bergman tem um dos melhores papéis de sua vida, e toda a sua experiência como atriz é exigida ao extremo por seu papel, que é executado com uma bravura incrível. Lamentavelmente, pode-se dizer que até a sua experiência de vida ajudou a encorpar a sua personagem, já que ela começou a filmar logo após descobrir que tinha câncer, a doença que a vitimaria poucos anos depois. Enfim, a união do grande “diretor de atores” que é o Ingmar Bergman com a Ingrid, uma das melhores atrizes de todos os tempos, rende momentos inesquecíveis, dignos de serem exibidos em cursos de atores mundo afora. E nem comecei ainda a comentar de Liv Ullmann... outra grande atriz, essa sim parceira de Ingmar Bergman em vários filmes, que não se apequena diante das circunstâncias e também dá uma força, e, ao mesmo tempo, uma fragilidade importantíssima ao filme. O roteiro fornece os grandes diálogos entre as duas, mas a direção do Bergman também é muito inteligente, como se pode ver na cena de Liv Ullmann tocando ao piano, sob o olhar crítico da mãe... a dor da sapiência da própria me
diocridade e de ser vítima de um eterno julgamento negativo está toda lá, separando as duas, e nada é falado diretamente... o silêncio dizendo mais do que mil palavras.A fotografia de Sven Nykvist, apesar de chamar menos atenção do que em outros filmes do Bergman, é fundamental para acrescentar ainda mais textura ao filme e evitar que este ficasse por demais claustrofóbico. Em comunhão com as sólidas atuações do resto do elenco (Lena Nyman como Helena, a outra filha doente, e Halvar Björk como Victor, o marido que inteligentemente não se intromete entre as duas, são os de maior destaque), todos esses elementos tornam “Sonata de Outono” um filme especial. Todos sempre se lembram (com justiça), de “Morangos silvestres”, “O sétimo selo”, “Gritos e sussurros”, entre alguns outros, como os melhores filmes de Ingmar Bergman, mas raramente vejo citarem “Sonata de Outono” neste seleto grupo... este pequeno grande filme talvez mereça uma maior atenção neste sentido.
Reportagem de Marcelo Renno.
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